quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Reprise: Histórias e Sonhos

Publicado originalmente em 05/08 no GoLuck

Sou um tipo de ovelha negra na minha família. Não porque, em um vasto mar de médicos, decidi lançar meu pequeno bote conta as ondas do Jornalismo. Nem por ter escolhido a disciplina e a austeridade dos japoneses à bagunça dos italianos, dominantes à esquerda e à direita. Sempre tive sonhos estranhos. Sempre tive aspirações diferentes.

Enquanto a grande maioria dos meus colegas sonhava - como todo bom garoto - se sagrar em gramados, quadros e piscinas, eu desenvolvi um fascínio incontrolável pelo universo policial. Não pela simples adrenalina de perseguir e trocar tiros com malfeitores, mas pela magia, pelo mistério de se deparar com um caso misterioso, juntar as provas, ligar os pontos e descobrir se foi mesmo o Coronel Mostarda com o Candelabro na Sala de Estar. Mais tarde, isso desenvolveu-se em uma insaciável sede pelas leis. Unir a sagacidade do detetive de antes à atuações impecáveis num tribunal para defender os mais fracos. Um menino de dez anos querendo ser advogado. Onde já se viu?

E foi então que, lá pelos idos de 2004, frequentando um fórum de games pequeno, mas com discussões de altíssima qualidade, que me deparei com um tal de Gyakuten Saiban. Enquanto baixava a rom do jogo - feio de admitir, mas é verdade - perdi a conta de quantas vezes joguei a brevíssima demo do site oficial. Por Deus, o que era aquilo? Os três jogos da série provaram minha culpa e me condenaram a sessões longuíssimas na frente do computador. Sonhos, devaneios, personagens que despertam amor e ódio, aquela prova que decide tudo, aquela reviravolta. Quem jogou um Ace Attorney sabe exatamente do que estou falando.

Bato meu martelo de madeira e digo que os sonhos são o motor da vida, ponto final. É é por isso, portanto, que algumas relações que temos com alguns games em específico são especiais - no amplo sentido da palavra. Há jogos que nos impressionam pelo detalhismo estúpido com que gotas de sangue e colunas vertebrais se contorcem na tela, ou como cada parafuso de um carro se contorce perfeitamente durante uma batida. Há aqueles que deixam qualquer um vidrado na tela, mãos segurando controles como garras, para saber o que vai acontecer. Há os simplesmente divertidos, pra dar umas boas risadas e contar vantagem em cima dos seus amigos que não passaram horas treinando aquele combo ou seqüência de notas. Mas presenciar os seus sonhos mais insanos se realizando é, como diz o ditado, outra história.

Ligar Gyakuten Saiban era - e ainda é - como ver todos os meus sonhos de infância realizados, tudo sob medida. Não é uma série perfeita, definitivamente não é. Mas é a minha série. É o meu sonho ali. E eu amo cada instante. E é isso que torna um game, como dizem, épico para esse que vos fala. Não existe gráfico, não existe armadura de fuzileiro espacial, não existe último chefe com dezoito asas de anjo lutando ao som de Carmina Burana. Quando um jogo te toca naquilo que você é, naquilo que você sempre quis ser e fazer, aí não tem jeito. E a sensação é ímpar. Okami, o tão homenageado - e tão pouco vendido - jogo da Capcom faz algo assim, mas de um outro jeito: não é o enredo do sonho, é a estética. Correr com Amaterasu e Issun pelos campos de Nakatsukuni (Nippon) exige beliscões periódicos.

“Santa redundância, Capitão Óbvio!” diz você, leitor possivelmente melhor conceituado, mais vivido e quiçá bem informado do que esse humilde ex-futuro praticante da lei. “Talvez”, retruco-lhe, “mas não faz mal relembrar”. Tanto para nós, jornalistas com nossos infalíveis olhos críticos quanto para eles, os Willy Wonkas hi-tech que, em suas fábricas mágicas cheias de Oompa-Loompas programadores, designers e músicos, trabalham e cantam em coral e tom perfeito para que essa indústria vital continue rodando. Toquem-nos, produtores. Façam com que lembremos da nossa infância, do tempo em que qualquer coisa parecia possível. Nos games, elas SÃO possíveis.

Já chamaram a cinematográfica Hollywood de “fábrica dos sonhos”. Não discordo. Mas fico feliz em saber que, mais do que poder ver um sonho na tela, eu posso vivê-lo com o controle na mão. E pelo menos nessa sensação eu sei que não estou sozinho.,

*Fernando Mucioli é estudante de jornalismo e editor do site GameTV. Ele também acredita que queijo quente é melhor no pão de forma

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